segunda-feira, 23 de maio de 2011

DOIS CAMINHOS

É fácil saber se uma pedra foi retirada de um rio ou se foi quebrada em uma pedreira. As de pedreira apresentam muitas quinas, são ásperas e irregulares, agressivas ao tato. As pedras de rio são lisas e roliças, já sofreram um polimento natural. Ao longo do tempo, a correnteza das águas vai se encarregando de atirá-las umas contra as outras, para arredondar lhes as arestas. Na medida em que vão se tornando polidas, vai sendo reduzido o atrito entre elas, já não se ferem, deslizam harmoniosamente umas entre as outras, como esferas lubrificadas de um rolimã.

O processo evolutivo espiritual das criaturas humanas pode ser comparado ao do burilamento das pedras de rio. O Espírito é criado puro e ignorante. Puro, porque não traz qualquer tendência para o mal. ignorante, porque não adquiriu ainda qualquer conhecimento. Ao longo das reencarnações sucessivas, a correnteza da vida também nos atira uns contra outros: somos levados a conviver entre semelhantes. Em nossa infância espiritual, ainda como pedras-brutas, essa convivência é marcada pelo atrito entre nossas arestas. A rusticidade do homem das cavernas nos mostra o que foram nossas primeiras encarnações; o instinto animal predominando sobre a razão e o sentimento, a matéria sobre o Espírito, o estado de guerra como condição permanente.

Passaram-se séculos e milênios, abandonamos as cavernas, participamos da construção, do apogeu e da queda de diferentes impérios, vivenciamos diversas culturas. Com as conquistas da ciência, domesticamos a natureza, transformamos a paisagem ao nosso redor, descobrimos como tornar a existência mais confortável. Observando, no entanto, nosso mundo interior, nos deparamos com a presença incômoda e persistente de imperfeições atávicas, paleolíticas. A História nos revela que, mesmo após deixar as cavernas, o homem conservou traços do troglodita em sua intimidade espiritual. Pois foi nossa ignorância rústica que, diante da vacilação de Pilatos, exigiu o martírio do doce Jesus. Foram nosso orgulho e nosso egoísmo que produziram as guerras, os massacres das Cruzadas, as fogueiras da Inquisição e os horrores da Escravatura. Ingênuos os que supõem que não estavam lá. Assim, ao longo desses séculos, avançamos muito mais no progresso material, exterior, do que a jornada ética, íntima, do Espírito.

"A evolução espiritual é contínua, não regride nunca, mas pode ser retardada em seu processamento se não se aproveitar bem a oportunidade que Deus concede ao Espírito reencarnante." (FEB, Currículo para as Escolas de Evangelização). Viver em sociedade é aspecto essencial desta oportunidade. Frequentemente nos sentimos inconformados por termos de conviver com pessoas que nos aborrecem, nos irritam, nos são antipáticas, mas essa convivência é um dos processos naturais de nosso burilamento. Tais pessoas são indispensáveis: elas nos incomodam exatamente em nossos pontos mais fracos, mais sensíveis, e nos apontam, portanto, quais são esses pontos, quais são nossas piores arestas: os que precisam de ajuda incomodam ao nosso egoísmo, os que julgamos melhores que nós nos ferem a vaidade e o orgulho, e assim por diante. Cada conflito é um alerta e um roçar polidor de arestas. Quanto mais ásperos somos, mais dolorosos são os atritos, pois a dor é consequência de nossos atos de desamor para com o próximo, nesta ou em outras existências.

Diferentemente das pedras, entretanto, a criatura humana, sendo dotada de inteligência, consciência e livre-arbítrio, pode escolher caminho evolutivo menos doloroso. Jesus nos aponta o rumo: amarmo-nos uns aos outros. Nenhum de nós Foi criado para sofrer e o amor pode livrar-nos da dor, pois ele nos "cobre a multidão dos pecados" (1 Pedro IV, 8).

A evolução é lei universal e irrevogável, mas dois caminhos nos são oferecidos para percorrê-la: dor ou amor. A prática do amor proporciona polimento indolor em nossas almas, suaviza-nos as arestas, desenvolve-nos o altruísmo, harmoniza nossa convivência com os semelhantes. A decisão é sempre nossa.

Maurício Roriz - Revista Espírita Allan Kardec, nº 39.

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